A técnica lenticular há tempos foi incorporada pela indústria e pode ser vista em brinquedos, agendas, cadernos, e quadros decorativos, em especial naqueles de temática religiosa. Pouco gente sabe nominá-la e quase ninguém compreende sua lógica de funcionamento e histórico no universo das artes visuais. A pesquisa Agreste Lenticular, apoiada pelo Funcultura, idealizada e capitaneada pela artista, professora de Artes Visuais e doutoranda do PPGDesign da UFPE, Marcela Camelo, visa justamente esmiuçar e resgatar essa técnica secular de composição de imagem.
O termo lenticular significa “o que tem forma de lente”. A lenticularidade é uma técnica aplicada para obtenção de imagens em movimento ou imagens que se transmutam. O lenticular está entre as técnicas de autoestereoscopia, aquelas que permitem uma imagem em 3D sem a necessidade de uso de óculos. Também estão nessa categoria o scanimation e o Efeito Moiré, que podem ser entendidos como uma derivação do lenticular. Trata-se de um estudo de percepção visual. Duas ou mais fotografias são tiradas para uma composição. Depois as fotos são codificas em linhas, impressas e, posteriormente, a lente é aplicada sobre essas impressões.
“No seu modo mais artesanal, a construção de um lenticular se dá a partir da junção de duas imagens. Ambas são “cortadas” em tiras e uma imagem única é composta a partir da disposição das tiras intercaladas. Desta forma, o movimento e a mudança da imagem é obtida a partir do ponto de vista de quem a observa ou no movimento sobre o material no qual ela está gravada, impressa ou pintada”, explica Marcela Camelo.
O surgimento da técnica Lenticular remete ao primeiro cinema, mas há registros de pinturas do século XVII com a aplicação do modo lenticular de compor imagens, como no díptico do pintor francês Gaspar Antoine de Bois-Clair. “É um cinema em papel, quando você coloca a lente, é como se tivéssemos fazendo a transição, a fusão da imagem, do canal A para o canal B. Só que isso é feito de modo analógico. Me dedico a pesquisar essa técnica associando a um conteúdo específico: mulheres de uma comunidade rural”, detalha.
A família da pesquisadora é natural de Iati, no Agreste pernambucano, onde está situada a comunidade do Trapiá. As mulheres desta comunidade mantêm viva há anos a realização de uma novena e são as grandes protagonistas da estruturação e organização social do lugar. Essa configuração já havia chamado a atenção de Marcela, que documentou esse contexto da comunidade liderada pela ação das mulheres em dois curtas-metragem. Foi nessa convivência com essas mulheres que a pesquisadora se viu intrigada pelo objeto lenticular. “No interior, as pessoas costumam ter em casa quadros com lenticulares de santos e imagens bíblicas. Essa questão do sagrado, do mágico, do Jesus que se transforma em Maria. Esses quadros chamaram minha atenção. Um dia resolvi ir à feira e comprei um desses para mim. Abri e fui tentar entender como era seu funcionamento”.
A partir daí surgiu a ideia de investigar a técnica pouco conhecida, e muito sofisticada do ponto de vista técnico, e tornar as mulheres que desenvolviam o protagonismo religioso o tema representado no processo de pesquisa. “Juntando esses dois pontos, além de resgatar técnicas que me parecem ter enorme potencialidade nas artes visuais e também no ensino, eu poderia buscar também a minha ancestralidade e também a daquelas mulheres. Fazendo isso eu também fomentaria a permanência dessa novena-festa, valorizando essas práticas, esse catolicismo anárquico produzido por essas mulheres e a relação que elas mantém com a natureza, que é uma forma de resistência e uma forma de política”, pontua a pesquisadora que passou a fotografar essas figuras femininas de referência e usar as imagens nas 30 composições lenticulares que compõem a pesquisa.
Como a técnica foi incorporada ao universo kitsch e é dominada pelos chineses, Marcela trilhou um longo caminho para compreender o seu funcionamento e criar uma espécie de manual para quem deseja produzir um lenticular, além da grande dificuldade de conseguir adquirir a lente para a sua execução – foi preciso importá-la dos EUA.
A pesquisa, que contou com o apoio do Funcultura e que faz parte de uma investigação maior para o doutorado de Marcela Camelo, terá como culminância uma vivência com alunos da Escola Miguel Arraes de Alencar, em Garanhuns, entre os dias 20 e 24 de maio. Os alunos terão contato com todos os conceitos explorados na pesquisa – imagens lenticulares, scanimation, autoestereoscopia, Efeito Moirè, optical arte, primeiro cinema – e poderão colocar “a mão na massa”, produzindo imagens nessas técnicas. As imagens produzidas pela pesquisadora, que é professora do Instituto Federal de Alagoas – Campus Santana do Ipanema, também circularão no Santuário de Santa Quitéria de Frexeiras, em Garanhuns, para onde muitos fiéis fazem romarias, muitas vezes levando ex-votos e os lenticulares religiosos. Posteriormente, as imagens também serão exibidas na comunidade do Trapiá, em Iati, e futuramente no Recife.